domingo, 16 de março de 2008

A exclusão social começa no Estado

Há lares apoiados pelo Estado que se recusam a aceitar idosos seropositivos. Só no ano passado, a Segurança Social recebeu três queixas. As associações que trabalham no terreno garantem que a discriminação é generalizada e denunciam a existência de "guetos" para pessoas infectadas.

As três denúncias chegaram "devidamente documentadas" aos serviços do Instituto da Segurança Social (ISS) no ano passado, revelou o presidente daquele organismo, Edmundo Martinho, acrescentando que "os processos ainda estão a decorrer".

Segundo Edmundo Martinho, num dos casos terá havido "quebra do sigilo profissional" do médico que divulgou a situação clínica do idoso aos responsáveis do lar. Nas três instituições de solidariedade social, comparticipadas pelo Estado, os infectados só conseguiram vaga depois da intervenção dos serviços do ISS.

"Estamos perante uma nova realidade, que trouxe novas problemáticas. Existem mais pessoas com alguma idade que são seropositivas", lembrou Helena Silveirinha, do ISS.

Casos de infecção na população mais velha têm aumento nos últimos anos

De acordo com o Instituto Ricardo Jorge, estão notificadas no país 2411 pessoas seropositivas com mais de 55 anos. Nos últimos tempos, tem aumentado exponencialmente o número de novos casos de infecção na população mais velha. Se nos anos 80 raramente surgiam mais de dez novos casos de seropositivos por ano, na década de 90 já rondavam os cem e actualmente chegam a ultrapassar os 200.

A evolução das terapêuticas trouxe um aumento da esperança de vida dos seropositivos mas trouxe também um problema: hoje existe uma camada da população envelhecida que está infectada e pessoas que não sabem como lidar com estes doentes.

E por isso, muitas vezes os problemas não desaparecem nem no momento de entrar para um lar. Dizer que não há vaga ou pedir mais dinheiro são algumas das formas usadas para barrar a entrada a quem está infectado. Os truques são conhecidos por quem lida diariamente com o problema.

Associações falam em discriminação "camuflada".

"Todos os dias recebemos queixas de pessoas que dizem que os serviços não os aceitam", disse Margarida Martins, presidente da Associação Abraço.

Também na Liga Portuguesa Contra a Sida (LPCS) são constantes os relatos de doentes que não conseguem entrar num centro de acolhimento, alegando "estarem cheios ou não terem capacidade para dar resposta". "Já não se ouvem justificações com base na infecção, porque sabem que incorrem numa pena. Agora, as respostas são camufladas", explicou a presidente da LPCS, Maria Eugénia Saraiva.

Sílvia Rocha, assistente social da LPCS, também conhece vários casos de discriminação, que acredita serem ampliados com a falta de respostas dos serviços sociais. "A inclusão em lares já é difícil só por si e havendo poucos lugares, torna-se ainda mais difícil dar uma vaga a um seropositivo", alerta.

Santa Casa da Misericórdia tem espaços diferenciados

A liga recorre muitas vezes aos serviços da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), mesmo não sendo apologista da separação definida pela instituição nos finais da década de 80.

Na Misericórdia é feita a diferenciação entre as pessoas que estão infectadas e as outras, independentemente de serem jovens ou idosos. A instituição criou espaços específicos para as vítimas do VIH, nomeadamente acolhimento residencial, apoio domiciliário e centro de dia, numa época em que "a discriminação era assumida".

Hoje, a Santa Casa mantém duas residências para seropositivos com graves problemas socio-económicos.

Apesar de Maria Eugénia Saraiva defender que "não é a filosofia da Liga haver guetos para pessoas com VIH, que é uma doença como outra qualquer", a associação acaba por recorrer muitas vezes aos serviços da Misericórdia, destinados a pessoas carenciadas.

O projecto foi criado numa altura em que "a discriminação era assumida" mas sempre na esperança de se tornar obsoleto, vitima de uma mudança de hábitos da sociedade, lembra Ana Campos Reis, responsável da Misericórdia.

No entanto, passados 19 anos, os comportamentos continuam os mesmos: os vizinhos continuam a discriminar, a família continua a recusar viver com familiares seropositivos e os próprios hospitais continuam a ter regras discriminatórias.

Ana Campos Reis lembra uma doente que teve alta muito antes do tempo definido por ter tomado café na cafetaria do hospital e um doente hospitalizado a quem recusavam fazer a barba porque se podiam cortar. "Estas histórias aconteceram há poucos meses, não foi há vinte anos".

A mentora do projecto tem apenas um estranho desejo. "O meu sonho era que um dia este serviço deixasse de fazer sentido. Mas penso que ainda há um longo caminho a percorrer".


Notícia retirada do Diário de Notícias (on-line em www.dn.pt)

Sem comentários: